Um dos exercícios diários do ator (ou aspirante a ator) é treinar a observação, o olhar, a percepção das entrelinhas. Por mais sutis que sejam. Saímos da aula de teatro outro dia com esta incumbência: “observem, anotem, percebam o detalhe, o outro, os trejeitos, as expressões, os sorrisos, as gargalhadas, as lágrimas (inclusive, as contidas). Observem tudo. Não deixem passar o que naturalmente transita desapercebido. Estes elementos são um arsenal incrível para a atuação do ator”.
Dito e feito: amanheci o dia com o “Wi-fi humano” ligado. A primeira situação que saltou aos meus olhos deu-se já na saída da garagem do prédio onde moro. O vigia, de sorriso orelha a orelha, não hesitou em dar um “bom dia” animado para o motorista do carro da frente que, falando no celular, mal o percebeu. É bom que se diga que não era um “bom dia” qualquer. Parecia um daqueles que se dá e recebe em dia de jogo do Brasil, em Copa do Mundo. Os brasileiros conectam-se pela nacionalidade nestas oportunidades. Na sequência, foi a minha vez de receber o mesmo sorriso e saudação do vigilante. Fiquei imaginando 300 carros saindo do condomínio e o sujeito mantendo-se positivo e simpático. No mínimo, foi inspirador para mim.
Um pouco mais adiante, almocei, depois de meses, no meu restaurante predileto na cidade, com uma amiga querida de longa data. Falamos de amenidades e de coisas da vida. Contei-lhe sobre a aula de teatro no dia anterior, e o quão mobilizador estava sendo o exercício para mim. Foi quando me lembrei da Lúcia, minha incansável e fiel faxineira, há doze anos trabalhando comigo, e de sua célebre e estrambólica frase: “Isso não tem ‘nadazaver”. Leia-se: “Nada a ver”. Só que assim mesmo: tudo junto e exprimido, numa simplicidade e espontaneidade únicas da mineira mais doce e cuidadosa que conheço. Pensei com os meus botões: “Que personagem incrível ela daria! ”.
Deixei o restaurante, despedi-me de minha amiga, e segui rumo ao carro, estacionado na entrequadra. Ao passar por um dos prédios, avistei três jovens estudantes da rede pública de ensino, na faixa de seus 16 anos, uniformizadas, deitadas próximas ao piloti do edifício, dividindo uma marmita de material descartável, daquelas feitas de papel alumínio. Diminui o passo para que desse tempo de observá-las e ouvi-las melhor. Entre uma garfada e outra, elas sorriam e conversavam descontraidamente. Remeti-me ao meu tempo de escola, quando, em trabalhos extraclasse, conversávamos exponencialmente mais do que produzíamos. Revisitei emoções, situações engraçadas e a lembrança de pessoas que nunca mais vi na vida. Senti saudades.
Tomei consciência de que, vez ou outra, é bom voltar a ligar o botão interno de Wi-fi humano d’alma, que – pressionados pela vida moderna, correria do dia a dia e desconexão com o agora -  acabamos por deixar ser desligado. Ou nós mesmo o fazemos de forma inconsciente. Vai saber.
Como de costume, me vieram alguns questionamentos: que consequências tenho ao desacionar este botão na minha vida? Por que permito que isso ocorra? Como me sinto ao reconectar-me? O que sou capaz de enxergar quando minha mente e meu coração estão efetivamente abertos? Que possibilidades se abrem para mim, a partir deste lugar?
São incontáveis as reflexões e, curiosamente, as descobertas de deliciosos personagens que transitam o nosso dia a dia.  Muitos – até então invisíveis - estavam por perto, bem de baixo do nosso nariz. O mais curioso, no entanto, é quando nos damos conta de que como é possível a gente não ter sido capaz de enxergá-los.
 Flávio Resende
* Jornalista, empresário e coach ontológico.