Com a ajuda de um lenço, o estuprador evitava que a menina, de 10 anos, acordasse os pais com possíveis gritos de dor. Mãos presas para cima, pés para fora da cama, indefesa dentro da própria casa, tudo o que pôde fazer foi obedecer o homem que a violentou e, ao final do ato, se levantar para tomar banho. “Vá se limpar e depois volte”, dizia ele. Esta e tantas outras frases marcaram a infância e boa parte da vida adulta da hoje psicóloga Laura (nome fictício), que encontrou na sua nova formação uma maneira de ajudar outras vítimas de crimes sexuais.
O abuso, sofrido desde os 4 anos — e durante longos 7 anos—, jamais foi percebido pela família, e demorou a ser sentido mesmo pela vítima, muito pequena para entender a manipulação do “tio”. Só mais tarde, quando já tinha se tornado uma criança agressiva e de pavio curto, o estupro chegou às vias de fato.
Foi gradual. No dia em que ele penetrou, doeu demais, e mal conseguia andar quando me levantei. Lembro dele dizendo ‘Agora vá descansar porque você já sabe como é e será assim todos os dias’— conta ela, que se tornou uma criança agressiva e que não queria ser tocada.
Hoje, aos 33 anos e mãe de um menino de 7 anos, Laura se sente mais forte e pronta para compartilhar a sua experiências com outras mulheres e homens que sofreram abusos. Ela deixou de ser uma vítima e perdeu o medo de amar e mesmo o de se machucar:
Não me tornei insensível ou indiferente às pessoas. Quando amo de verdade, eu me entrego. consigo me perceber e perceber o outro, gostar das pessoas. Sei que existem pessoas más, muito más. E boas, muito boas. Se você não superar, pode não morrer de verdade, mas é como morrer, porque vai parar de viver experiências que podem te fazer feliz. Eu me culparia muito mais se eu me impedisse de viver — diz ela.
Leia o relato completo de Laura:
“Todos os anos, ele (o estuprador) passava as férias na casa dos meus pais, desde que eu tinha 4 anos. Era um amigo de trabalho que me foi apresentado como tio, alguém em que eu aprendi a confiar, fui induzida por meus pais. Ele me dizia que eu era muito bonita e que era difícil para ele se controlar, mas que um dia eu ia amá-lo como ele me amava, e que precisava ficar quietinha. No começo, eram apenas carinhos por fora da roupa, na cabeça, na barriga e até no peito e, gradualmente, a cada seis meses, as carícias iam ficando mais ousadas, e ele ia me preparando para o estupro de verdade, me dizendo que eram partes secretas do meu corpo, que eu não podia contar daquilo para ninguém, principalmente para meus pais. ‘Se você contar pra sua mãe ela vai ficar brava, isso é uma coisa nossa, entre a gente’, e dizia que isso era uma coisa minha e dele.
Quando eu tinha entre 6 e 7 anos, ele passou a ir para a minha cama no meio da noite e não me penetrava, mas tirava toda a minha roupa, me puxava para o canto da cama e eu ficava completamente a mercê dele. Fisicamente, não tinha muito o que fazer, nem coragem para falar. Só percebi que isso era errado por volta dos 8 anos, quando assisti a uma cena de estupro em um filme. Ele incutiu o medo na minha cabeça, assim como a intimidade foi gradativa. Ele estava totalmente seguro de que eu não iria contar quando resolveu me penetrar. Quando aconteceu, o meu irmão estava viajando, então eu estava sozinha no quarto com ele.
No dia em que fui estuprada senti muita dor. Ele colocou um lenço na minha boca, segurou as duas mãos pra cima e me colocou na ponta da cama, com as pernas para fora. Falou para mim o que ia fazer: ‘Depois de tudo isso eu vou mostrar pra você pra que serve tudo isso’. Eu tentei empurrar, mas ele era bem maior do que eu: ‘Você vai sentir dor, sim, mas não faça barulho. Você já é grandinha, você já aguenta’, dizia ele. Hoje eu sei que não foi demorado. Eu não entendia na época, mas agora sei que durou pouco. Depois, ele me limpou. Aí se levantou e se vestiu. ‘Agora você vai pro banheiro tomar um banho, depois volta aqui”. Eu fui. Sentia dor mesmo pra andar, mas como ele já tinha colocado o dedo, etc, eu não tinha como saber se teria sido mais doído. Tomei banho sem falar nada. Engoli o choro, dei meu jeito de lidar com a situação. Quando voltei para o quarto, ele falou ‘Agora descansa, porque você já sabe como vai ser daqui em diante’, e também que me amava e que estava mais linda do que nunca’.
Fui estuprada todos os dias depois desse, durante os 15 dias que ele ficou na minha casa. Era sempre o mesmo ritual: quando meu pai começava a roncar, ele se levantava e fechava a porta. Depois, vinha para a minha cama. Tudo aquilo era muito surreal. Achava que não estava acontecendo, mas sabia de alguma forma que era errado. Mesmo assim, achava que brigariam comigo se soubessem, porque de certa forma ele tinha me convencido de que eu era responsável por aquilo também.
O sexo em si era rápido. A pior parte é que ele passava muito tempo me beijando, fazendo carinho, e era uma tortura para mim, porque sabia o que estava por vir. Então, eu meio que ficava apática àquilo tudo. No fim das contas, isso só foi parar de acontecer quando um dia eu reagi, um ano depois, quando eu tinha 11 anos. E voltou à cidade e o ciclo se repetiu: ele me estuprou de novo todos os dias durante os dez dias que passou com a gente. Depois, foi para a casa de uma sobrinha dele, que me descreveu como alguém que “também era especial”. Era aniversário dela e fomos convidados.
Durante a festa, ele bateu no meu ombro e falou ‘Não te preocupa que eu não vou ficar um ano fora de novo e eu não vou esquecer você um dia sequer’. Senti muita raiva, fúria. Depois, ele elogiou meu vestido e, em seguida, se levantou para ir ao banheiro. Não aguentei mais: fui atrás dele e o empurrei pelo pescoço. Falei com ele que, se ele chegasse perto de mim ou da minha casa, eu o mataria, e que só não o fazia ali porque não queria ser igual a ele. Voltei para a mesa como se nada tivesse acontecido, comi bolo, e só ouvi novamente falar dele anos depois, quando morreu, anos depois.
Não foi fácil passar por isso tudo, mas acho que hoje sou uma pessoa mais pronta para lidar com muitas coisas, me tornei perceptiva. Comecei a notar outros comportamentos abusivos e evitei passar por outras experiências como aquela. Depois do estupro, passei a ir para livrarias e lia muito sobre o tema, sobre o perfil da vítima e do estuprador. Queria aprender a controlar a minha agressividade, porque ficava cega, não olhava em volta, e fiquei com medo de um dia não conseguir me controlar e perder os limites. Hoje, sei que de todas as situações horríveis, podemos tirar coisas boas. Aprendi a namorar, perdi o medo e, com o tempo, consegui me entregar e fazer sexo. Passei por uma fase perdida, em que tinha uma necessidade física muito grande, mas ela passou e agora sei quando quero estar com alguém e como.
Hoje, lido tanto com adultos abusivos quanto com mulheres abusadas no meu trabalho, e minha percepção me ajuda como uma ferramenta fantástica. Fiz o melhor que pude fazer: crescer. Meu objetivo é ajudar outras pessoas a perceberem seus próprios limites e vivenciarem experiências que sejam positivas para elas. É uma coisa boa de tudo isso, e nada dessa história me traz pra trás”.