David Bowie era chamado de “o camaleão do pop”. A cultura pop, bem entendida, significa exatamente essa diversidade: um Olimpo de arquétipos narrativos que nos compensa as agruras e falácias de uma civilização judaico-cristã monoteísta. Que tenta vender a mentira de que “a autoridade”, ou a legitimidade, emana de uma única fonte, regradora, patriarcal e compreensível.
De cara, vamos deixar de lado essa bobagem de que “rock” é a parte autêntica e “pop” a parte comercial da música jovem (outra falácia patriarcal). A descrição da cultura rock como “sexo, drogas e rock’n’roll” é apenas a versão profana de tantra, transe induzido e celebração criativa, três vieses da transcendência. E, de acordo com sua origem nas artes plásticas (Richard Hamilton, Andy Warhol e outros), pop não é a prostituição aos valores do mercado. Mas, ao contrário, uma interface entre as facilidades e simbologias do mercado e propostas mais densas e intrigantes.
Na música, isso foi inicialmente percebido pelos Beatles, que descobriram que podiam reinvestir seus “créditos” comerciais em música complexa, adicionando escalas orientais, música erudita clássica e concreta, técnicas inovadoras de estúdio etc. Mas, assim como aconteceria com Mick Jagger, Iggy Pop, Robert Plant e outros ícones, com o tempo a questão colocada para McCartney e Lennon (esse com uma mãozinha da personal brander Yoko Ono) seria mais a expansão e polimento de seus personagens públicos do que as viradas de mesa.
Evidentemente essa “expansão e polimento” não se dá sem turbulência. O ícone pop é um sacerdote profano. Se visto por uma lógica vudu, quem é que controla quem, o (supostamente) “poderoso” artista, ou as legiões de fãs anônimos que recortam sua figurinha e projetam nele suas ansiedades e frustrações?
Por isso é que faz muito mais sentido um “camaleão” do pop do que um “rei” do pop, que forçosamente é uma falcatrua ou uma vítima de suas próprias fantasias. Bowie, apesar de ter se jogado de cabeça em suas fantasias, mantinha uma espécie de centro estável, ou de consciência focada, que permitiu inclusive que ele socorresse figuras em trajetória de destruição.
Foi o caso de Lou Reed (para quem produziu Transformer, em 1972, que reergueu/ focou a carreira de Lou), de Iggy Pop (que tirou literalmente da sarjeta, e para quem produziu seu melhor álbum, The Idiot, em 1977, inclusive atuando ao vivo como diretor musical e seu tecladista), de Peter Frampton, que resgatou do ostracismo na Glass Spider Tour (1987), e até de Nina Simone, que apoiou no período em que morou nos EUA.
Não creio que Bowie resgatasse os outros por bondade cristã (até porque Transformer e The Idiot, por exemplo, são cheios de “maldade”, por assim dizer). Mas por uma habilidade neoxamânica mesmo. Ao longo de sua trajetória, David Jones (aquele cara sagaz dois passos atrás de sua própria imagem projetada) entendeu como podia usar David Bowie, a figura pública, para pintar um mosaico de possibilidades artísticas e expressivas. E reinvestir continuamente seus ganhos materiais, psíquicos e culturais em novas camadas criativas.
O “camaleão” se esmeraria mais em explorar diferentes sonoridades e parcerias: ao longo dos anos, John Lennon, Queen, Giorgio Moroder – para a trilha de A Marca da Pantera –, Mick Jagger, Pat Metheny – para a trilha de A traição do Falcão –, Arcade Fire (aqui uma seleta dessas gravações). Mais ou menos o contrário de um equivocado Michael Jackson, que exercia seu “reinado” pop comprando o catálogo dos Beatles ou tendo um estranho casamento com a filha de Elvis Presley, como que tentando adquirir legitimidade.
O Bowie que se descortinou na exposição que passou pelo Brasil em 2014 era antes de tudo um cara com uma curiosidade infinita, um senso de estilo muito maior que seu ego (isso parece um paradoxo, mas é a materialização da ambivalência que é o eu a cultura pop tem de melhor). Bowie era um leitor incansável. Não só de livros (aqui sua incrivelmente variada e inteligente lista de 100 livros prediletos, que inclui escritores de várias pátrias, épocas e extrações, como Mishima, Bulgakov, Lampedusa e Burgess, como crítica cultural e contracultural, psiquiatria, política, espiritualidade, poesia etc). Mas leitor da aventura humana como um todo.