Dia das crianças é um dia para receber presentes, brincadeiras, gostosuras e muitos outros agrados por parte daqueles que cuidam.


Por outro lado, não posso deixar passar a data sem fazer uma reflexão sobre o lugar da criança nos tempos atuais: um indivíduo autônomo, que na sua relação com adultos não pode ser tratado como um ser passivo, subalterno ou mero objeto. Mas, sim, uma criança ou adolescente com direitos, desejos e sonhos. Neste dia celebrativo, trago um destaque para as crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional e familiar. 

O que sabe uma criança sobre seu acolhimento? Que memórias ela preserva de seu passado? E sobre sua vida futura, que caminhos ela imagina que seguirá?  Esses e outros temas semelhantes fazem parte do trabalho que a equipe técnica do Grupo Aconchego, o qual faço parte, vem realizando. A proposta é fazer uma escuta atenta a esses pequenos seres humanos, a partir de suas próprias vozes, expressões e vivências, abrir portas para o seu protagonismo nos processos de escolha e decisão, sem deixar, contudo, a nossa responsabilidade como adultos, em acolher, cuidar e orientar.  

Nos processos de adoção é prática comum entre os serviços de justiça, fazer um trabalho minucioso de escuta das famílias que pretendem ser pai ou mãe pela via adotiva. A escuta do desejo, de suas motivações e idealizações quanto ao futuro filho ou filha, são conversas recorrentes.  Para tal, estudos, rodas de conversas e encontros de preparação psicossocial são ações do Projeto Entrelaços, um trabalho do Grupo Aconchego, apoiado pelo Criança Esperança/UNESCO e pela Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal. 

Por outro lado, a escuta da criança e do adolescente em processos de adoção, também é respaldada legalmente, mas ainda é um trabalho pouco realizado entre os serviços sociais. Geralmente esse trabalho é realizado próximo a sua apresentação à família pretendente. Entretanto, baseado na prática, entendo a necessidade de ouvir crianças e adolescentes antes de colocá-los em contato com a família por adoção. Essa etapa faz toda a diferença em sua adaptação familiar. Afinal, não se pode olhar para frente sem desvendar os mistérios do passado.  

Quando falo em escuta de crianças e adolescentes acolhidos, penso em uma escuta como sinônimo de aceitação, amparo, cuidado, que me parece o significado mais amplo de acolhimento. Escutar e não apenas ouvir o que é dito ou respondido em palavras. Não é interrogar, vai muito além do diálogo em que um fala e outro ouve. Para se escutar é preciso ter empatia com a criança, reconhecer sua realidade e suas vivências, considerar suas preferências e particularidades. É preciso se conectar e observar suas diversas maneiras de se expressar, suas brincadeiras, seus desenhos, permitir que ela manifeste suas emoções, sentimentos e conflitos. Escutar as crianças requer: disposição, observação, conexão, distanciamento e, muitas vezes, silêncio. 

É unânime entre estudiosos, que em um processo de adoção, a criança também adota. Ignorar isso é reduzi-la à dimensão de objeto de interesse e desejo do adulto. E, em meu entendimento, para que a criança participe ativamente de sua adoção, ela precisa, antes de tudo, rever sua história, compreender o que lhe aconteceu.  

Sei o quanto é difícil para crianças e adolescentes saírem de um canto para outro sem que ninguém conte a eles o que está acontecendo. A razão da saída de seu ambiente familiar, por mais acertada e mais protetiva, não deveria violar ainda mais os seus direitos e a sua dignidade. Saber legalmente o que está lhe acontecendo é um direito fundamental. 

Não é uma temática fácil para falar, mas temos que considerar essa realidade em nossos trabalhos. Somente olhando para esse lugar de dor, uma, duas ou mais vezes, é possível que a criança compreenda o que muitas vezes é falado de modo tão superficial, como “sua mãe ou seu pai não puderam ficar com você por que não tinham saúde mental, emocional e espiritual”. Essa é uma fala ineficaz se não usarmos a empatia e o conhecimento teórico dos fatos para ajudá-los a dar um novo lugar e significado a essa dor. 

Querer uma família dá o direito de a criança pensar sobre ela.  De criá-la em sua imaginação, ainda que na realidade ela não exista. Mas, é possível desejar um pai e uma mãe, ou um pai ou uma mãe, solteiros? É possível ser amado por dois pais ou duas mães? A criança pode se perguntar se em sua vida cabe uma família de outra cor, raça ou etnia, um pai ou uma mãe com deficiência física ou com problemas de saúde, ou uma família com outros filhos. É assim que ela pode ir gradualmente criando em seu mundo interno, um espaço para ser filho, para se deixar cuidar e amar.  

E quando alguém nos pergunta: e se essa criança não conseguir uma família, não irá ser traumatizante? Eu, como psicóloga e coordenadora do Grupo Aconchego, tenho a convicção de dizer que, desenvolver um trabalho onde as crianças possam falar e representar seus desejos, traz esperança em viver uma nova vida. Nesse Dia das Crianças talvez ainda não tenham conseguido uma família, mas são respeitadas como seres humanos e podem externalizar o sonho de constituição de sua futura família. Pior do que a expectativa frustrada, é o medo de frustrar-se, pois este sim, é paralisante e capaz de congelar as emoções.   


*Psicóloga e coordenadora do Projeto Entrelaços, um trabalho do Grupo Aconchego, apoiado pelo Criança Esperança.


Sobre o Grupo Aconchego – O Aconchego é uma entidade civil, sem fins lucrativos, fundada em dezembro de 1997, que trabalha em prol da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes em acolhimento institucional.

Filiado à Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção – ANGAAD o aconchego é reconhecido como referência em Brasília e conta com grande projeção nacional na criação de tecnologias sociais com vistas à garantia do direito das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, por meio de ações de intervenção com potencial para a transformação social e cultural.


Fonte:Proativa Comunicação